No inicio da década de 80 estive pela primeira vez na Itália e fui conhecer a cidade onde meu pai nasceu.
Foi uma emoção indescritível conhecer os lugares que ele descrevia em suas historias.
Ao chegar à Itália, mesmo depois de quase 24 horas viajando sem dormir, foi impossível cochilar enquanto o trem se aproximava da cidade onde ele nasceu. A paisagem a emoção de ver aquela terra era enorme e me deixou em “transe”.
Sentia que mesmo sem nunca ter estado lá eu fazia parte de tudo aquilo. Eu conhecia aquelas montanhas, eu conhecia aquela terra, aquela gente. Eu era parte daquela terra.
O tempo que passei no pequeno “paese” do meu pai foram dias emocionantes e cheios de histórias.
Todo o tempo eu “procurava” pelos “personagens” das historias que ele contara. Conhecer os locais onde as historias aconteceram.
As pessoas estranhavam uma moça tão jovem querendo saber sobre coisas do passado.
É... Eu sempre fui uma apaixonada por historias!
Meu pai, filho de camponês, após ter participado da segunda guerra mundial foi para a Bélgica trabalhar nas minas de carvão.
Naquela época ele não tinha muitas opções, aquele foi o destino tomado por vários amigos, pois não havia trabalho para todos na Itália e sua família havia perdido toda a “criação” e não tinham como fazer seus salames, queijos etc... Os soldados, de várias nacionalidades, diversas facções, que passaram pela minúscula propriedade haviam levado tudo o que podiam.
A guerra deixou seu rastro de fome e dificuldades para todos. A comida era contrabandeada e cara. Tinha se pouco para comer.
O primeiro salário que ele recebeu trabalhando nas minas de carvão ele enviou para seus pais que logo compraram uma “vaca” para restabelecerem o fornecimento de manteiga e queijo na família.
Essa vaca havia sido premiada num concurso local, porem uma doença em suas “tetas” a havia deformado e ficou desvalorizada. Assim eles puderam comprar um bom animal por um preço razoável.
Essa vaca se chamava “Perla” (Perola) e foi um marco no reerguimento da família no pós-guerra.
Assim que começa o verão, é costume nas montanhas da “Valtellina” soltarem as vacas que passaram o inverno confinadas nos estábulos. Um cuidado importante se faz necessário: amarram grandes sinos em seu pescoço a fim de localiza-las com mais facilidade. O som desses sinos é uma característica dessas montanhas, canções e poesias falam dele.
( Sons da Valtellina no verão : https://www.youtube.com/watch?v=kXfDyM5dmlI)


O sino estava preso num grosso e largo cinturão de couro com uma grande fivela tambem feita de prata e bronze.
Deu-me o presente, mas queria tirar o “cinturão” ao qual era preso, pois segundo ele o “couro” estava com cheiro de vaca! Implorei que não fizesse isso, pois para mim o "cheiro" o deixava mais original! Ele só riu e me entregou o presente
Não sei se ele conseguiu perceber o tamanho da satisfação que senti ao receber o presente.
Guardo com enorme carinho e é uma recordação de meu pai, de meus tios, de meus nonos.
Na viagem de volta para o Brasil, fiquei com medo de que pudessem perder minhas malas, afinal isto acontecia com certa frequência. Resolvi que levaria ele na mão. Coloquei o em uma sacola junto com outros objetos contrabandeados como queijos, vinhos, funghi e salames. Tudo o que não era permitido passar na alfandega, no Brasil.
Minha viagem de volta foi: Torino/Milão/ Roma/Rio/ BH
Assim que cheguei ao aeroporto em Torino percebi que estava cheio de policiais armados com metralhadoras. Achamos aquilo estranho afinal não sabíamos de nada mais sério que estivesse acontecendo na cidade.
A essa altura eu nem me lembrava do porque minha sacola de mão estava tão pesada. 10 Quilos! Na sacola de mão!
Despachei a mala, fiz o check-in e fui para o embarque onde novamente seriamos vistoriados. Ao chegar à recepção para o embarque, eu só fiquei preocupada com os vários rolos de filme que trazia na minha bolsa (sim, ainda eram aquelas películas) e me esqueci de que a “sacola de mão” deslizava pela esteira rolante e estava sendo “devassada” pelos Raio-X !
De repente uma sirene altíssima ecoou ao meu lado e imediatamente me vi cercada por uns quatro ou cinco soldados e um deles usou o cano da metralhadora par me afastar da fila! Fazia perguntas porem eu estava tão apavorada que custei a entender que ele me perguntava sobre o que tinha dentro da sacola que havia disparado o alarme de metal.
Respondi que levava somente alimentos...
Tornou a me perguntar...
E eu fui abrindo a sacola para mostrar a ele que só tinha queijos, funghi, salames e...
Oh! Meus Deus ! O sino !!!!!!
Oh! Meus Deus ! O sino !!!!!!
Eu havia esquecido do sino.
Eles ficaram muito bravos comigo. Acho mesmo que ficaram decepcionados. Queriam fazer uma boa apreensão... Queriam pegar uma brasileira contrabandista... ai meu Deus !
O resto do tempo que fiquei esperando na sala de embarque eles ficaram me observando... Eu morrendo de medo!
Eles ficaram muito bravos comigo. Acho mesmo que ficaram decepcionados. Queriam fazer uma boa apreensão... Queriam pegar uma brasileira contrabandista... ai meu Deus !
O resto do tempo que fiquei esperando na sala de embarque eles ficaram me observando... Eu morrendo de medo!
Foi durante essa espera que alguem na sala de embarque comentou comigo que no dia anterior haviam preso um casal de “brasileiros” que haviam tentado passar com armas. UFA!!!!
Enfim embarquei com meus salames, queijos e funghi... Agora a preocupação era só que no Brasil eu não fosse pega na alfandega com minha “matula”.
No Brasil apertei a tal campainha e ufa! Deu verde, passagem livre, não precisei passar na inspeção!
No Brasil apertei a tal campainha e ufa! Deu verde, passagem livre, não precisei passar na inspeção!
Sim! Os queijos estavam maravilhosos...
Recordei toda essa historia porque hoje ao abrir uma pagina na internet me deparei com uma antiquíssima tradição da região da Valtellina, Valcamonica e Aprica. Chama se “Suna da mars” (sons de março ou canção de março) que me trouxe muitas lembranças.
A festa é uma antiga tradição mágica, pagã que acontece no ultimo dia do mês de fevereiro quando os camponeses descem das montanhas com seus trajes típicos de inverno, em uma espécie de procissão fazendo um barulho ensurdecedor com suas campainhas, sinos, e corneta. Todo esse barulho é para “despertar a primavera”, pois já estão cansados do inverno. Acordam a natureza para que recomece a brotar e dar o alimento que no passado, era escasso no final do inverno. Exibem e tocam com orgulho seus sinos e campanas... Foi então que eu me lembrei do meu sino!
Pensei até em ir no próximo ano para lá na época da festa... Quem sabe eu levo o meu sino?
Quando eu começo a pesquisar eu custo a parar e então continuei com minha busca pelas tradições locais de Sondrio. Acabei descobrindo que o que meu pai me contava como uma “brincadeira de crianças” é na verdade uma tradição local e é conhecida como: LE FORA L’ORS DE LA TANA (o urso esta fora da toca)
A região montanhosa da Valtellina foi no passado, infestada por ursos e lobos. O “paese” onde meu pai nasceu não fugia a regra. Ursos e lobos vagavam com frequência nos arredores das casas e atacavam pessoas e animais. Os camponeses para se protegerem, contruiam suas casas uma colada a outra.
Até a chegada da luz elétrica naquelas localidades, as casas eram construídas de forma que não fosse necessário sair “a rua” para se locomover de uma casa para outra. Uma porta, uma varanda ou um corredor as ligavam.
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Casa no Palú ( Caiolo - Sondrio em 1981) |
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Casa no Palú ( Caiolo - Sondrio) em 2014 |
(Essas casas estão muito bem retratadas num lindo filme chamado “A Árvore dos Tamancos”)
A tradição é na uma brincadeira da época e acontecia nos primeiros dias de fevereiro, época em que os ursos acordavam de sua longa hibernação. Consistia em assustar algum amigo desprevenido ou mais medroso gritando: Corre que o urso saiu da toca!
Se você fizer essa brincadeira hoje em dia, aqui no Brasil, a pessoa com certeza dirá que você é louco... Mas naquela época... As pessoas não iam correr o risco de duvidar.
Era melhor correr e conferir depois.
Lobos e ursos eram reverenciados num passado recente e esse é o motivo de muitos homens naquela região terem o nome de: Adolfo
Adolfo significa lobo nobre, uma alegoria do poder indestrutível.
Ah... É o nome de meu pai!